Crônicas

  • Divórcio Judeu - Autor desconhecido

Antevéspera do Ano Novo Judaico, Boris Sylberstein, patriarca judeu, morador de um Kibutz pertinho de Tel Aviv, visita um dos seus filhos na capital de Israel: - Jacobzinho odeio ter que estragar seu dia, mas papai precisa dizer-te que a mamãe e eu vamos nos separar, depois de 45 anos!
- Tá louco papai, o que você tá dizendo? Grita Jacob.
 Jerusalém inteira ouve!
- Não conseguimos mais nem nos olhar um ao outro. Vamos nos separar e acabou-se o que era doce. Ligue pra tua irmã Rachel e conta pra ela. Apavorado, o rapaz liga para a irmã em Viena, que se desespera ao telefone:
- De jeito nenhum nossos pais irão se separar! Chama papai ao telefone!
O ancião atende e a filha balbucia na maior emoção:
- Não façam nada até nós chegarmos amanhã, compreende? Também chamarei Moishe em São Paulo, Shloimo em Buenos Aires e Esther em Nova Iorque e amanhã de noite, todos estaremos , ouviu bem papai?
Bate o telefone, sem deixar o pai responder. O velho coloca o fone no gancho vira-se para a mulher, sem que Jacob ouça, sussurrando:
- Prondo Sarah, todos virão para a Ano Novo. que desta vez não pagaremos os passagens!
Autor desconhecido (caso alguém saiba o autor, por favor, me comunique).

  • Fícus ItalianoFernando Sabino

Meu escritório tem uma mesa, uma cadeira, a máquina de escrever, uma estante, meia dúzia de livros, meu arquivo. É tudo que eu preciso.
Mas percebo que me falta algo mais. Algo de que justamente eu não necessito: rigorosamente dispensável, que tenha na própria inutilidade uma perfeita justificação de sua existência. Que simplesmente exista, portanto: algo vivo.
Nem chega a ocorrer-me que poderia ser um passarinho, por exemplo: eu acabaria me esquecendo de dar-lhe alpiste. Uma planta – uma planta resolve o meu problema. Corro à esquina, onde, havia posto reparo, tem justamente um homem que vende plantas em vasos.
─ O senhor pode me informar quanto custa esta.....
Foi a primeira evidência real que tive de minha irrecuperável ignorância em matéria de plantas: não sabia o nome daquela nem de nenhuma outra.
Comigo-ninguém-pode ─ tornou o homem.
Não estava me desacatando: logo percebi que se referia à tal planta.
─ O senhor não prefere samambaia? ─ sugeriu, depois de medir com ceticismo a minha presumível aquisitiva.
Evidentemente samambaia eu sabia o que eraportanto, não devia ser grande coisa.
Não, prefiro uma planta mais cara ─ respondi idiotamente, pois não sabia quanto custava a samambaia.
Devo ter pago o dobro do que valia a que acabei comprando:
─ Aquela ali, por exemplo.
Apontei ao acaso uma que me pareceu bela, pelo menos o vaso: era um vaso grande, de louça branca, redondo, como um penico.
─ Ah, sim, aquele fícus italiano.
Fiquei sabendo então que dali por diante seria proprietário de um fícus italiano. Sem mais indagações, mandei transportá-lo para o escritório.
Começou o meu duro aprendizado. O primeiro que chegou foi o psiquiatraque tem consultório ali no andar de cima, muito bem situado para qualquer emergência.
Não quero te chatear, meu velho, você está tão satisfeito com a sua planta: mas diz minha mulher, e ela entende dessas coisas, que fícus italiano tem que receber sol direto, senão morre.
Mais essa, agora: sol direto, de manhãzinha, debaixo da janela. E justamente quando a janela costuma estar fechada. Conformado, arrastei penosamente o vaso para junto da janela, dispondo-me a deixá-la aberta na minha ausência.
No dia seguinte chegava um cliente do psiquiatra:
Quem foi que lhe disse isso? Tira essa planta daí que senão ela cresce feito uma árvore.
Ideia de esquizofrênico, não tinha dúvida. Contrariado, medi com o olhar a altura da parede: pelo ar de alarme que ele assumira, me via em pouco tendo de pedir ao vizinho de cima licença para abrir um buraco no teto. Tinha graça eu terminar com uma árvore aqui dentro do meu escritório.
─ Dizem que na sombra ela morre....
Morrer, não morre ─ tranqüilizou-me o próprio homem das plantas, na esquina: ─ Mas não dará jamais aquelas folhas roxas, tão bonitas.....
Que mais ela dá?  ─ pergunto-lhe, interessado.
trabalho ─ concluo logo: fícus italiano não come alpiste, mas bebe água. É quando estou na rua é que me lembro não haver molhado a palma. Molho a planta, passo o resto do dia enxugando o chão: tem um furinho debaixo do vaso, isso não me ensinaram. Coloco um prato: a água transborda do prato. Molhou demais! ─ adverte o homem: assim ela morre. Não sei o que fazer para enxugar a própria terra encharcada. Tiro-a da sombra, com medo de estar morrendo, tiro-a do sol, depois de medi-la, com medo de estar crescendo: a cada manhã, quando abro o escritório, temo ver compridas raízes se alastrando pelo chão. E fico nisso o dia inteiro, não consigo concentrar-me no trabalho.
Fícus italiano, porca miséria.
Fecho o escritório e vou-me embora.
Como vai indo ela? ─ e o homem das plantas pisca o olho, sorridente, ao ver-me passar.
Comigo ninguém pode ─ retruco, decidido.
Crônicas - A companheira de viagem.

  • Aniversário - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
Eu sabia que esse negócio de fazer aniversário todos os anos iria dar nisso: acabei envelhecendo. Às vezes me pego pensando no que vou ser quando crescer e me dou conta de como minhas opções diminuíram. Não tenho mais idade para ser nada. me animo quando vejo uma lista de prováveis candidatos a sucessor do papa. A idade média deles é 70. Ser papa é uma das poucas coisas a que eu ainda posso, realisticamente, aspirar. Mas minha única credencial para o cargo é a idade. Não sou cardeal, não sou nem praticante. Devo ter deixado minha no bolso da fatiota azul, de calças curtas, com que fiz minha primeira comunhão. E a única coisa de que me lembro do evento, além da fatiota (e da gravata prateada!), não é a emoção de receber a hóstia e o rito eucarístico, são os doces que tinha em casa, depois. Acho que foi ali que fiz a minha opção preferencial pela perdição.
Invejo quem tem , mas não posso deixar de pensar que a minha religião particular, uma espécie de panteísmo urbano (devoção por pastéis e boas livrarias e a crença de queum deus, sim: o deus do oboé, que além de ser um instrumento divino é o que afina todos os outros), é a única sensata, em meio ao que não deixa de ser – se bem examinada – uma crise mundial do monoteísmo.
Bons tempos em que, em vez de não ter mais idade, nós ainda não tínhamos idade. E sonhávamos com tudo o que viria, quando tivéssemos. Entrar em filme proibido até 14 anos. Beber e fumar. (O importante não era a bebida e o cigarro, era a pose que se fazia bebendo e fumando. Ficar adulto era adquirir a pose). Beijar como beijavam nos filmespelo menos nos proibidos até 14, que nos proibidos até 18 ninguém sabia o que acontecia. Ficar acordado até mais tarde. Ganhar a chave da casa. Dirigir carro. Usar bigode.
Ainda não ter idade era ficar pinoteando no partidor, indócil, como um cavalo esperando a largada. Não ter mais idade é ficar com essa impressão que até um ato de revolta por tudo que não fizemos quando tínhamos idade e agora nãomais, não seria, assim, apropriado para a nossa idade.
Chama-se vida essa lenta transformação da frase, de ainda não ter idade para não ter mais idade. Ou de poder ser, teoricamente, tudo o que se sonhasse, a poder ser, teoricamente, papa. E por pouco tempo
O GLOBO
30/09/2012

  • Construção - Martha Medeiros

“O início da paixão é estratosférico, as pessoas não param quietas exibindo tudo que podem fazer. Depois passam a confessar o que realmente querem. A paixão é mentir tudo o que você não é. O amor é começar a dizer a verdade.”
É mais ou menos isso. No começo, a sedução é despudorada, inclui, não diria mentiras, mas um esforço de conquista, uma demonstração quase acrobática de entusiasmo, necessidade de estar sempre junto, de falarem-se várias vezes por dia, de transar dia sim, outro também. A paixão nos aparta da realidade, é um período em que criamos um universo paralelo, é uma festa a dois em que, lógico, há sustos, brigas, desacordos, mas tudo na tentativa de se preparar para algo muito maior. O amor.
É que a cobra fuma. A paixão é para todos, o amor é para poucos. Paixão é estágio, amor é profissionalização.
Paixão é para ser sentida; o amor, além de ser sentido, precisa ser pensado. Por isso tem menos prestígio que a paixão, pois parece burocrático, um sentimento adulto demais, e quem quer deixar de ser adolescente?
A paixão não dura, o amor pode ser eterno. Claro que alguns casais conseguem atingir o sublime — amarem-se apaixonadamente a vida inteira, sem distinção das duas “erassentimentais. Mas, para a maioria, chega o momento em que o êxtaselugar a uma relação mais calma, menos tórrida, quando as fantasias são substituídas pela realidade: afinal, o que se construiu durante aquele frenesi do início? Uma estrutura sólida ou um castelo de areia?
Quando a paixão e o sexo perdem a intensidade é que aparecem os outros pilares que sustentam a históriacaso eles existam. O que alicerça de fato um relacionamento são as afinidades (não podem ser raras), as visões de mundo (não podem ser radicalmente opostas), a cumplicidade (o entendimento tem que ser quase telepático), a parceria (dois solitários não formam um casal), a alegria do compartilhamento (um não pode ser o inferno do outro), a admiração mútua (críticas não podem ser mais frequentes que elogios) e, principalmente, a amizade (sem boas conversas, nãofuturo). Compatibilidade plena é delírio, não existe, mas o amor requer ao menos uns 65% de consistência, senão o castelo vem abaixo.
O grande desafio dos casais é quando começa a migração do namoro para algo mais perene, que não precisa ser oficializado ou ter a obrigação de durar para sempre, mas que não se permite ser frágil. Claro que todos querem se apaixonar, nãomomento da vida mais vibrante. Mas que as “mentirinhas” sedutoras do começo tenham a sorte de evoluir até se transformarem em verdades inabaláveis.

  • O Homem e o Mundo - Autor desconhecido.

Um cientista vivia preocupado com os problemas do mundo e estava resolvido a encontrar meios para melhorá-los. Passava dias em seu laboratório em busca de respostas para suas dúvidas.
Certo dia seu filho de sete anos invadiu seu santuário decidido a ajudá-lo a trabalhar, O cientista, nervoso, pela interrupção, pediu que o filho fosse brincar em outro lugar. Vendo que seria impossível removê-lo, o pai procurou algo que pudesse ser oferecido ao filho com o objetivo de distrair sua atenção. De repente deparou com o mapa do mundo que procurava! Com o auxílio de uma tesoura, recortou o mapa em vários pedaços e, junto com um rolo de fita adesiva entregou ao filho dizendo:
-Você gosta de quebra-cabeças? Então vou lhe dar o mundo para consertar. Aqui está o mundo todo quebrado. Veja se consegue consertá-lo bem direitinho? Faça tudo sozinho.
Calculou que a criança levaria dias para recompor o mapa. Passadas algumas horas, ouviu a voz do filho que o chamava calmamente: “Pai, pai. fiz! Tudo!!! Consegui terminar todinho!!!
A princípio, o pai não deu crédito às palavras do filho. Seria impossível, na sua idade, ter conseguido recompor um mapa que jamais havia visto.
Relutante, o cientista levantou os olhos de suas anotações, certo de que veria um trabalho digno de uma criança. Para sua surpresa o mapa estava completo, todos os pedaços haviam sido colocados nos seus devidos lugares. Como seria possível? Como o menino teria sido capaz?
- Você não sabia como era o mundo, meu filho, como conseguiu?
- Pai, eu não sabia como era o mundo; mas quando você tirou o papel da revista para recortar, eu vi que do outro lado havia a figura de um homem...
Quando você me deu o mundo para eu consertar, eu tentei, mas não consegui. Foi que me lembrei do homem, virei os recortes e comecei a consertá-lo.
Quando consegui consertar o homem, virei a folha e vi que havia consertado o mundo. 
Moral da História: Não se pode mudar o mundo sem antes mudar o homem.

  • Hora de  Dormir - Fernando Sabino 

- Por que não posso ficar vendo televisão?
- Porque você tem de dormir.
- Por quê?
- Porque está na hora, ora essa.
- Hora essa?
- Além do mais, isso não é programa para menino.
- Por quê?
- Porque é assunto de gente grande, que você não entende.
- Estou entendendo tudo.
- Mas não serve para você. É impróprio.
- Vai ter mulher pelada?
- Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo.
- Todo dia eu tenho.
- Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.
- Espera um pouquinho.
- Não espero não.
- Você vai ficar vendo e eu não vou.
- Fico vendo não, pode desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu pai.
- Os outros meninos todos dormem tarde, eu que durmo cedo.
- Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. para a cama.
- Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.
- Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.
- Pode perder.
- Deixe de ser malcriado.
- Você mesmo que me criou.
- O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?
- Falo como quiser, pronto.
- Não fique respondendo não: cale essa boca.
- Não calo. A boca é minha.
- Olha que eu ponho de castigo.
- Pode pôr.
- Venha ! Se der mais um pio, vai levar umas palmadas.
- Quem é que anda lhe ensinando esses modos? Você está ficando é muito insolente.
- Ficando o quê?
- Atrevido, malcriado. Eu com sua idade sabia obedecer. Quando é que eu teria coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando .. . Quando ele falava está na hora de dormir, estava na hora de dormir.
- Naquele tempo não tinha televisão.
- Mas tinha outras coisas.
- Que outras coisas?
- Ora, deixe de conversa. Vamos desligar esse negócio. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.
- Chato.
- Como? Repete, para você ver o que acontece.
- Chato.
- Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai.
- E não adianta ficar chorando feito bobo. Venha .
- Amanhã eu não vou ao colégio.
- Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me comove. Anda, venha .
- Você me bateu...
- Bati porque você mereceu. acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.
- Por que você é assim, meu filho? para me aborrecer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo, e quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?
- Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a bênção e vá dormir.
- Papai.
- Que é?
- Me desculpe.
- Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.
- Por que não posso ficar vendo televisão.

  • “É bovina a humanidade?” - Ricardo Semler
A democracia, ao contrário do que parece, diminui a cada ano no mundo. Durma-se com esse ruído. Para quem se anima com os movimentos dos jovens árabes, há que se considerar que algumas derrocadas de ditadores mudarão pouco o quadro.
A “The Economist” acompanha há quatro anos essa situação e não cai na conversa de países que têm eleições livres, mas manipulam a imprensa. E, desde que começou a monitorar 165 países, a democracia verdadeira tem caído ano a ano.
Agora, jovens no Oriente Médio saem às ruas para derrubar monstros e palhaços quedécadas barbarizam seus países. Não cabe perguntar por que esses movimentos ocorrem, pois é óbvio.
Não vale creditar muito ao Facebook - facilita, mas onde estava a internet nas revoluções Americana (1776), Francesa (1789) e Russa (1917)? Vale, sim, perguntar por que os pais desses jovens aceitaram, plácida e bovinamente, décadas de ditadura deslavada. Por que brasileiros aceitaram duas décadas de ditadura militar ou por que americanos aceitaram que Bush afogasse em torturas - como se no porão do DOI-Codi- suspeitos de terrorismo?
Bufonaria em democracia ocorre sempre - é mirar o Berlusconi ou lembrar que aquele seu Collor de Mello, que a bovina massa expulsou do poder, agora -desde o mês passado- nos representa no mundo como presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado! Cadê o movimento facebookiano dos jovens daqui?
A primeira conclusão poderia ser a de que povo, contanto que seguro, com economia controlada e com medo de erguer a voz, aceita privações de liberdade. Com adição de terror consegue-se muito mais: juntar milhões de judeus em estações de trem ou fazer dezenas de milhões de indianos, iraquianos e ruandeses matarem seus vizinhos de muro. Suspenda-se esse raciocínio para pensar no resultado do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) sobre as nações mais educadas do mundo. Cansou-se, no Brasil, de dizer que a ditadura não investia em educação porque povo educado não tolera ditador.
Agora, 4 dos 5 países melhores no ranking do Pisa estão sob regimes dirigistas ou totalitários. E agora, José? A verdade é que o sistema de educação no mundo divide-se em dois: o que manda aprender o que o governo quer (isso vai muito bem, obrigado, na Ásia) ou o que persiste num método de submissão para gerar uma linha de montagem de pessoinhas educadinhas que sirvam para o mercado de trabalho (é nóis na fita).
Os dois têm algo em comum: geram reações de manada que, a cada tanto, têm que se rebelar - mas quando o absurdo passa de todos os limites. O que temos a dizer? Muuu?
* RICARDO SEMLER, 51, é empresário. Foi scholar da Harvard Law School e professor no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachuesetts). Foi escolhido pelo Fórum Econômico de Davos como um dos Líderes Globais do Amanhã. Escreveu dois livros (“Virando a Própria Mesa” e “Você Está Louco”) que venderam 2 milhões de cópias em 34 línguas.
Fonte original: Folha de São Paulo (SP)

  • Inquilinos - Luis Fernando Veríssimo ― O mundo é Bárbaro.

Ninguém é responsável pelo funcionamento do mundo.
Nenhum de nós precisa acordar para acender as caldeiras e checar se a Terra está girando em torno do seu próprio eixo na velocidade apropriada e em torno do Sol, de modo a garantir a correta sucessão das estações. Como num prédio bem administrado, os serviços básicos do planeta são providenciados sem que se enxergue o síndico ― e sem taxa de administração. Imagine se coubesse à humanidade, com sua conhecida tendência ao desleixo e à improvisação, manter a Terra na sua órbita e nos seus horários, ou se ― coroando o mais delirante dos sonhos liberaissua gerência fosse entregue a uma empresa privada, com poderes para remanejar os ventos e suprimir correntes marítimas, encurtar ou alongar dias e noites, e até mudar de galáxia, conforme as conveniências de mercado, e ainda por cima sujeita a decisões catastróficas, fraudes e falência.
            É verdade que, mesmo sob o atual regime impessoal, o mundo apresenta falhas na distribuição dos seus benefícios, favorecendo alguns andares do prédio metafórico e martirizando outros, tudo devido ao que pode ser chamada de incompetência administrativa. Mas a responsabilidade não é nossa. A infra-estrutura estava pronta quando nós chegamos. Apesar de tentativas como a construção de grandes obras que afetam o clima e redistribuem as águas, há pouco que podemos fazer para alterar as regras do seu funcionamento.
            Podemos, isto sim, é colaborar na manutenção da Terra. Todos os argumentos conservacionistas e ambientalistas teriam mais força se conseguissem nos convencer de que somos inquilinos no mundo. E que temos as mesmas obrigações de qualquer inquilino, inclusive a de prestar contas por cada arranhão no fim do contrato. A escatologia cristã deveria substituir o Salvador que virá pela segunda vez para nos julgar por um Proprietário que chegará para retomar seu imóvel. E o Juízo Final, por um cuidadoso inventário em que todos os estragos que fizemos no mundo seriam contabilizados e cobrados.
            ― Cadê a floresta que estava aqui? ― perguntaria o Proprietário.
Valia uma fortuna.
            E:
            ― Este rio não está como eu deixei....
            E, depois de uma contagem minuciosa:
            ― Estão faltando cento e dezessete espécies.
            A Humanidade poderia tentar negociar. Apontar as benfeitoriasmonumentos, parques, áreas férteis onde outrora existiam desertospara compensar a devastação. O Proprietário não se impressionaria.
            ― Para que eu quero o Taj Mahal? Sete Quedas era muito mais bonita.
            ― E a Catedral de Chartres? Fomos nós que construímos. Aumentou o valor do terreno em....
            ― Fiquem com todas as suas catedrais, represas, cidades e shoppings, quero o mundo como eu entreguei.
            Não precisamos de uma mentalidade ecológica. Precisamos de uma mentalidade de locatários. E do terror da indenização.

  • O lixo é nosso - Ivan Angelo

O calendário brasileiro deu à vida na Terra duas datas: 5 de junho, Dia do Meio Ambiente, e a segunda-feira da próxima semana, 4 de outubro, Dia da Natureza. Precisávamos de duas? Talvez precisássemos de 365.Temos castigado bastante essa parte do planeta conhecida como cidade de São Paulo. Gás carbônico e outros gases no ar, detritos nos rios, lixo por toda parte, esgoto nos mananciais, pichações nas paredes, ruídos ferindo tímpanos, mato dominando jardins, desordem imobiliária, calçadas esburacadas, buracos desastrosos nas ruas.
Uma cena comum na cidade: engolfado pelo trânsito, e também obstruindo-o, um homem-formiga carrega com enorme esforço pedaços do caos. É o carroceiro.
Tenho dito e repito: paciência, paulistanos, com o pobre carroceiro. Cala a tua buzina irritada, motorista, que o homem que ali vai, puxando sua carga enorme e desequilibrada, trabalha para o nosso bem. Não é muito o que ele pode fazer, ele não é mais do que uma formiga na paisagem, um nada, mas faz sua parte mínima com a força e a teimosia das formigas. Leva restos que espalhamos pelos caminhos.
Não o apressa, ele não consegue ir mais depressa. Não é ele que vai devagar, somos nós, o país. O atraso é nosso. O homem da carroça, o burro sem rabo, meu caro motorista, está por um conjunto de circunstâncias: para ele existir, tem de haver pobreza, tem de faltar trabalho, tem de sobrar lixo nas ruas, tem de faltar educação, respeito, planejamento administrativo, consciência do bem comum.Considera que ele nas ruas é mais 'verde' — mais limpo — do que nós: o carro dele não emite gases, não buzina, ele não é um consumidor de artigos descartáveis, não produz esse lixo, antes, o leva para a reciclagem. que curiosa contradição: ele, inconscientemente, é uma pecinha na grande engrenagem do avanço, enquanto nós, participantes da poderosa cadeia de consumo, modernos, estamos com um nos séculos passados, inconscientemente ligados àquela descuidada atitude que formou a sociedade atual: pegar, usar e largar.
Pensa, senhor cidadão de primeira categoria: que homem é esse? Um descartado — como as sobras que transporta. Ele não conta no sistema, não é contribuinte, não usufrui bens como CD, DVD, celular, computador, iPod, cinema, universidade, casa, transporte, televisão, roupa nova, geladeira, video game, muitas vezes nem sapatos. Nos índices das grandezas da cidade, é um nada, uma formiga levando rejeitos.
É justo haver carroceiro? É preciso haver? Ele é parte da pobreza, da exclusão e das carências deste Brasil dos Brics. Proviso riamente, tomemo-lo como símbolo de uma ideia. A ideia da reciclagem.Com a ajuda pequenina desse carroceiro, caro motorista, dessa formiguinha , 9 bilhões de latinhas são levadas para reciclagem, 91% de toda a produção de latinhas de cervejas e refrigerantes, mais papéis, papelões e latas de flandres de embalagens, de leites diversos, de óleos e conservas, de tintas e vernizes, e sucata de tudo quanto é eletrodoméstico, portões, grades, bicicletas, skates, peças de carros velhos, móveis, canos, torneiras, calhas, esquadrias e restos das demolições são levados para os fornos. Somando tudo, o Brasil recicla 70% do aço produzido! E mais papelão, vidro, plástico, alumínio...
Isso te surpreende, cidadão motorista? É o que diz o Centro de Informações sobre Reciclagem e Meio Ambiente. São recordes mundiais, mas que não expõem o lado da pobrezapor isso, meu paciente motorista, que levo a sério todo mundo que faz alguma coisinha para ajudar. Os que não levam saquinho de plástico para casa. Os que não compram produtos de empresas poluidoras. Os que repreendem quem joga até palito de picolé no chão. Os que levam saquinho para apanhar o cocô de seu cachorro na calçada. E os que levam lixo das ruas para a reciclagem, como esse nosso carroceiro, mesmo que ele faça isso apenas para ganhar um dinheirinho.

  • A Opinião em Palácio - Carlos Drumond de Andrade.
O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.
- Chamem a Opinião Pública? ordenou aos serviçais
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de freqüentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria um olho, isso mesmo de vez em quando
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse: 
- Preciso de ti. 
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopo, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião
- Vou te obrigar a ter opinião? disse o Rei, zangadoMeus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável
E  virando-se para os serviçais
- Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela volte aqui depois de decorar bem as apostilas
http://www.cortocabeloepinto.com/contos-do-mestre-drummond/

  • Vocações - Luís Fernando Veríssimo
Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi pára ver se estava com febre. na segunda é que foi carinho. Ia porque ia ser médica. tinha uma coisa: não podia ver sangue.
- Mas Leninha, como é que…..
- Deixa que eu me arranjo.
Não que ela tivesse nojo de sangue… desmaiava. Não podia ver carne mal passada. Ou Ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la
Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la -era o instinto medico-, mas botava o curativo com o rosto virado.
- Acertei? Acertei?
- Acertou o joelho. que é na outra perna.
Mas fez vestibular para medicina, passou e preparou-se para começar o curso.
- E as aulas de anatomia, Leninha? E os cadáveres?
- Deixa que eu me arranjo.
Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário. Quando abrissem
um cadáver, fecharia os olhos. A Olga descreveria tudo para ela.
- Agora estão tirando o fígado. Tem uma cor meio….
- Por favor, sem detalhes
Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue.
Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados.
- É concentração professor..
Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar a convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas.
- Mais pra esquerda…. agora corta!
Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou sua alma gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque, puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso. – Algum problema?_ perguntou, pronta para medicá-lo.
- Não_tentou sorrir o homem_ É o avião
- Você tem medo de voar?
- Pavor. Sempre tive.
- Então porque voa?
- Na minha profissão, é preciso.
- Qual é a sua profissão?
- Piloto.
Casaram-se uma semana depois.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mãe de Freud. Círculo de Livro, 1985.

  • Pedro Paulo Galindo Morales.
São nove e trinta da noite e eu ainda aqui, debruçado nesse Excel, cadê aquela diferença, barra rola para cima e para baixo e nada, será formatação? Perguntava para mim mesmo, falta ainda preparar a apresentação a reunião amanhã é às nove horas, o telefone toca.
- Ta ai ainda, esqueceu que tem que comprar o caderno da Ana? Vem Logo!
Esqueci de comprar o caderno de minha filha e não é isso não tirei o dinheiro do banco para levar para casa e agora? Nãoproblema tudo hoje funciona 24 horas, banco, supermercado, farmácia. São 10:20 da noite ainda bem encontrei a diferença era um simples espaço e ainda adiantei a apresentação.
Cheguei ao supermercado, fui ao banco 24 horas que fica dentro da loja, saquei o dinheiro e fui procurar o tal caderno depois de dois telefonemas e explicar como era a capa do caderno finalmente cumpri a missão ufa!
eram 11e vinte da noite quando me dirigia ao caixa, observei o movimento e vi quantas pessoas compravam ali e fiquei, pensei como a vida estava ficando difícil e corrida o ser humano não tinha mais descanso prorrogávamos as tarefas fazendo com que o dia tivesse mais horas do que as 24 pensava o quanto isso nos gerava stress.
pouco mais de 20 anos tudo fechava às oito horas da noite e nada funcionava aos domingos, esse dia era de lazer ou simplesmente descansar, visitar parentes, dia de Show de Calouros com Silvio Santos ou as noticias do Fantástico.
Tenho saudade desse tempo, não sou contra a modernidade, estamos acelerando demais a nossa vida, trabalhando muito, deixando a família de lado, estamos fazendo de conta que estamos sendo mais produtivos quando na verdade estamos deixando de viver momentos de descanso verdadeiro e saudável. O celular toca novamente! Esse às vezes é outro vilão dos tempos modernos.
- saiu do supermercado?
- Não, to na fila.
- Passa na farmácia e traz o meu remédio. Era quase meia noite e eu estou acordado desde seis da manhã e amanhã tem mais!